Cozinhar muda a vida

Cozinhar muda a vida
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Por Rita Lobo - 28 de fevereiro de 2020


A Helô, editora aqui do site Panelinha, bateu o olho num texto e imediatamente me mandou o link. Li, gostei e recomendei para os meus seguidores no Twitter. "Como cozinhar o jantar pode mudar sua vida" é o título (traduzido) de um artigo de Sam Sifton, editor da seção de gastronomia do New York Times e que está lançando um livro chamado "See You on Sunday: A Cookbook for Family and Friends" ("Até Domingo: um livro de receitas para família e amigos").

O texto está aqui, em inglês.

Sifton conta que por muitos anos, aos domingos, cozinhava para uma pequena congregação, após o serviço religioso numa igreja do bairro onde mora, no Brooklyn, em Nova York.

"O salão paroquial nas noites de domingo parecia mais um bar, um lugar para ir, um hábito.”

O número de pessoas variava, às vezes uma dúzia, em outras, muito mais do que isso. Vizinhos, moradores de rua, desconhecidos e as carinhas de sempre também. Ele descreve poeticamente a experiência e depois conta como, apesar de não cozinhar mais na igreja, a ideia da refeição como ritual ficou com ele.

ESTE TEXTO FOI PUBLICADO ORIGINALMENTE NA MINHA NEWSLETTER (27/2). ASSINE AQUI

Sifton recorre a um termo criado pelos cientistas sociais para falar sobre o efeito do hábito de reunir família e amigos regularmente para uma refeição compartilhada. "Cientistas sociais têm um termo para descrever a felicidade e bem-estar geral das pessoas. Eles chamam de 'satisfação com a vida' e entendem que está fortemente ligado ao tempo que você despende com as pessoas de que gosta. Um jantar regular com família e amigos é um jeito maravilhoso de criar esse tempo".

Aos imediatistas, ele avisa logo na sequência: a satisfação não vai aparecer de cara, na primeira refeição. O retorno vai se acumulando ao longo dos anos. Mas faz uma sugestão prática: a receita certa combina regularidade e panelões. Molhos, ensopados ou sopas, servidos com arroz, macarrão ou batatas. Pronto.

Quando li o artigo, fiquei pensando que, como o nosso trabalho no Panelinha é focado em ajudar você a resolver o jantar – e o almoço, e a marmita, e a lancheira das crianças – pode ficar parecendo que a cozinha nessas bandas não seja também uma curtição, uma doação, uma ferramenta para alimentar também as relações. E a cozinha é tudo isso. É lugar de alimentar o corpo e a alma, a carne e o espírito, tem espaço para o dia a dia e para o ritual, para a dúvida e para a fé.

Lembrei de uma outra jornalista (escritora, roteirista, diretora, produtora... a lista é longa!) que, como o Sam Sifton, adorava cozinhar para os amigos e familiares. Se você tem mais ou menos a minha idade, mesmo que não saiba quem foi Nora Ephron, é provável que tenha assistido a alguns dos filmes que ela dirigiu, produziu ou escreveu. Quer ver? 'Sintonia de Amor', 'Mensagem para Você', 'Harry e Sally', 'A Difícil Arte de Amar', só para citar alguns. (Ah, sim, 'Julie & Julia' foi seu último filme.)

Nora Ephron, além de escritora (roteirista, produtora... bom, você já sabe!) era também uma grande cozinheira. E excelente anfitriã. (Acredite, são coisas bem diferentes!) Ela fazia jantares inesquecíveis, para dezenas de convidados. Certa vez, contou que seguia a Regra dos 4:

"A coisa mais importante que aprendi com Lee (chef e autor de livros de cozinha) foi algo que batizei de Regra dos 4. A maior parte das pessoas serve três coisas para o jantar – algum tipo de carne, algum tipo de carboidrato e algum tipo de legume –, mas Lee sempre servia quatro. E a quarta coisa era sempre inesperada. [...] Pêssegos com pimenta-caiena. Tomates fatiados com mel. [...] O que quer que fosse, aquela quarta coisa parecia ter um efeito mágico sobre o processo de comer. Você nunca ficava cansado da comida porque sempre havia algo a mais para provar que parecia ao mesmo tempo combinar e contradizer o prato. Você podia ir de gosto em gosto e quando você terminasse de comer você sempre queria mais, então podia ir de gosto em gosto de novo."

Pode ser o panelão fumegante de molho servido com massa, como sugere Sifton, pode ser um cardápio com um quarto elemento surpresa, como defende Ephron. Para algumas famílias, esse ritual é o almoço dominical. Mas não precisa ser para a família, e também não precisa ser almoço nem aos domingos (embora domingo seja um dia em que todo mundo está mais disponível, mais fácil de combinar). Como diz Sam Sifton, cada refeição é uma pedra na fundação de uma tradição: vejo você no domingo? "Traga vinho ou bolo, um amigo ou flores, ou nada, pode trazer só você mesmo." O xis da questão é criar o hábito. Mesmo que ele seja apenas um encontro mensal. Vai dar certo. Vai ser bom.