A cafeteria

A cafeteria
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Por Rita Lobo - 23 de fevereiro de 2007


A exatos três quarteirões da minha casa, no sentido contrário ao do meu escritório, fica o café onde diariamente tomo a segunda dose de cafeína do dia. A primeira é em casa, quase em jejum, apenas para avisar o corpo de que não tem jeito: precisamos acordar. Faço tudo o que uma mulher casada e mãe de dois filhos deve fazer antes de sair para trabalhar e, depois, desvio o caminho para tomar o segundo café, este, apenas por prazer.

Junto comigo chega o dono do supermercado que cruza a rua para espairecer e tomar um café longe das gôndolas. A senhora de rabo-de-cavalo sempre lê revistas de decoração, mas não parece estar interessada em decorar nada. As duas amigas comem muffin, tomam cafezinho e jogam conversa fora que dá gosto de ouvir. A xará da minha filha, que me contou ser tia de uma querida amiga, leva o cachorro e devora o jornal. O rapaz de barba desfila uma coleção invejável de bonés e namora o laptop novo. Apesar do café ter a foto do avô do dono na parede, é um moderno ambiente wireless. E o cafezinho é muito bom. E tem ar condicionado. E as poltronas que ficam sob a bênção do patriarca são confortáveis. Sem querer, formamos um grupo de desconhecidos unidos pelo estranho conforto que ver os mesmos rostos de ontem traz. E pelo sabor do café, claro.

De uns tempos para cá, passei a observar um senhor inglês. Ele lembra o meu avô (e conseqüentemente me faz pensar no meu futuro). Talvez por isso eu tenha sentido a empatia que fez o meu queixo abaixar e levantar num cumprimento respeitoso logo na primeira vez que o vi. Ele não respondeu, porque não quis ou porque não viu. Ou só para me deixar com a pulga atrás da orelha. E deixou.

Calculo que esteja na casa dos setenta. Usa bengala, mas vai andando com vitalidade até o café. O chapéu Panamá, certamente um Montecristi, deve esconder a calvície e, sem dúvida, protege do sol. Os óculos com armação de tartaruga disfarçam a timidez e revelam a elegância. Está sempre com um livro e uma caderneta nas mãos. Lê, faz anotações, toma café, pensa. Dia desses, ele deixou o livro deitado sobre a mesa e foi apanhar a xícara de café no balcão (o serviço lá é assim: cada um por si e Deus contra todos). Apressei-me para matar a curiosidade. O título explicava o que ele estava lendo: 47 CONTOS DE ISAAC BASHEVIS SINGER.

Apesar da pinta de inglês, estou começando a achar que ele é de outro canto da Europa. Aliás, estava na cara: nunca o vi tomando chá! Talvez tenha vivido muitos anos na Inglaterra, de onde trouxe um ar blasé que não me engana: serve para amenizar a autocrítica. Bom, o fato é que, horas mais tarde, um outro exemplar de 47 CONTOS estava sobre o meu criado-mudo, aguardando ansiosamente pelo final do dia, quando serviria de pista para eu tentar decifrar o senhor do café que me faz pensar no meu futuro.

Escolhi A cafeteria, conto que começa na página 339. Depois voltei para o começo, li outro conto e, antes de continuar lendo os outros 45, fui para o glossário. “Zohar é o “Livro do Esplendor”, o mais importante texto do misticismo judaico; Yon Kipur é o Dia do Perdão; Yeshiva é uma escola de estudos da Torá...” V, T, S, R e, folheando de trás para frente, cheguei no C, de Cholent, “a comida tradicional do shabat. Cada família tem sua receita... Como é proibido cozinhar no shabat, muitas famílias preparam o prato na sexta-feira ao pôr-do-sol e o deixam cozinhando em fogo muito lento até o dia seguinte, o shabat.” E para a minha surpresa, ali mesmo no glossário do livro, surge a receita explicadinha passo a passo.

Nunca tinha visto um livro de literatura com uma receita no glossário... Mas de quem será a receita? Da família Singer? Do revisor? Do tradutor?

Na manhã seguinte, corri para o café. Talvez o próprio senhor inglês pudesse dar alguma pista. Cheguei no horário, pedi o meu café, sentei na poltrona sob a foto do “patriarca” e fiquei esperando. Nada. Quinze minutos depois, as inseparáveis amigas entraram rindo e falando sobre o carnaval. Pediram muffin e café e sentaram-se nas poltronas de sempre. Uma delas comentou comigo sobre o episódio Beth Carvalho. Vi ali uma oportunidade: “Pois é, e por falar em baluartes, quem não vi por aqui no carnaval foi aquele senhor inglês...”

As duas ficaram me olhando com cara de interrogação. “Que senhor inglês?” Expliquei que não sabia bem ao certo se ele era mesmo inglês e fiz uma descrição acurada de como eu lembrava de tê-lo visto pela última vez. “Nunca vi ninguém assim por aqui.”

Terminei o café e não insisti no assunto. Será que só eu reparei naquele senhor? Será que... Não. Não posso tê-lo criado. Amanhã eu volto. Quem sabe ele aparece. Mesmo que seja só para mim.

CHOLENT A ISAAC BASHEVIS SINGER

Ingredientes: 1 kg de costela de boi ou acém, em pedaços, 2 cebolas grandes picadas, 4 dentes de alho amassados, 2 colheres (sopa) de óleo, 4 salsichas, 2 ossos de tutano, 1 copo com feijões diversos, 1 copo de feijão-fava, 1 copo de cevadinha, 2 batatas grandes em fatias grossas, 2 colheres (sopa) de ketchup, 1 colher (sopa) de mel, 2 a 3 ovos crus com a casca embrulhados em papel-alumínio, kishque, sal, pimenta em pó, páprica a gosto.
Modo de preparo: Na véspera, coloque os feijões de molho e tempere a carne com sal, pimenta, páprica, alho, cebola. No dia seguinte, frite a carne no óleo até dourar. Retire e reserve. Em camadas, coloque as batatas fatiadas, a carne, os ossos de tutano, as salsichas, os feijões, a carne, a cevadinha, o kishque, o mel, o ketchup, o sal, a pimenta em pó e os ovos embrulhados. Cubra com água e leve para cozinhar em fogo muito lento por, no mínimo, seis horas, de preferência durante toda a noite, até o shabat.
Maneira de servir: forre uma forma refratária com arroz branco, sobre ele arrume o kishque, sem papel, cortado em fatias grossas, os ovos descascados cortados ao meio no sentido vertical. Em outra fôrma, coloque a carne as salsichas, os ossos e cubra com parte do molho. Em uma terceira fôrma refratária, mais funda, coloque os feijões com o restante do molho e sirva bem quente.
Para o kishque: 2 copos de farinha de trigo, ¾ de copo de óleo, ½ copo de água fria, uma cebola picada, óleo, sal, pimenta, páprica Modo de preparo: misture a farinha com o óleo e os temperos. Frite a cebola até dourar, misture com a farinha, mexendo para formar uma massa consistente. Faça um rolo grande ou dois menores, embrulhe em filme plástico, faça alguns furinhos com garfo, coloque na panela sobre os demais ingredientes do Cholent. (Originalmente, os kishques são feitos com pele do pescoço das aves.)