Ultraprocessados e obesidade no jornal The Guardian

Ultraprocessados e obesidade no jornal The Guardian
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Por Rita Lobo - 13 de fevereiro de 2020


Saiu hoje no jornal inglês The Guardian, um dos mais importantes e influentes do mundo, uma grande reportagem sobre a relação entre o consumo de ultraprocessados e a crise mundial de obesidade. Produzida pela escritora Bee Wilson (dos livros Pense no Garfo e Como Aprendemos a Comer), a matéria é bem completa e tem entrevista com o professor Carlos Monteiro, o pesquisador Kevin Hall e outras fontes relacionadas a este assunto. Eu também falei com a escritora, sobre a importância de cozinhar.

Aqui no blog, vou fazer um resumo da matéria e citar alguns trechos interessantíssimos. Para ler a matéria completa, em inglês, é só clicar.

Gostei muito de uma história que ela conta bem no começo do texto, revelando seu histórico com esses produtos. Ela escreve que, na adolescência, comia snacks compulsivamente e se culpava. "Olhava para o espelho e me perguntava: o que há de errado comigo?". Então, adulta e se alimentando melhor, entrou em contato com a classificação dos alimentos por grau de processamento e entendeu que a pergunta certa era: "O que há de errado com esta comida?".

Quanta gente não fica se culpando do mesmo jeito… Como se não houvesse um investimento enorme da indústria alimentícia em publicidade para convencer as pessoas a não cozinhar e consumir cada vez mais produtos ultraprocessados.

"Nos anos 90, não havia uma palavra que desse conta de todos os itens que despertavam minha compulsão. Algumas das coisas que eu comia demais – como chips de batata, barras de chocolate ou hambúrgueres de fast-food – eram junk food, mas outras, como o pão ou cereal matinal, eram itens básicos da despensa de qualquer casa. Esses produtos não pareciam ter nada em comum entre si além do fato de que eu achava muito fácil exagerar e comer a mais, especialmente quando estava triste. Enquanto devorava Pringles e pão branco, sentia que era uma fracassada por não ser capaz de parar. Não podia imaginar que um dia haveria uma explicação técnica de por que era tão difícil resistir. A palavra é 'ultraprocessado' e ela se refere a produtos alimentícios com poucos nutrientes, muito açúcar, gordura e sal e que são consumidos em excesso."

Ultraprocessado ainda não é um termo conhecido na Inglaterra, embora lá o consumo desses produtos seja altíssimo (em 2018, o Guardian publicou uma reportagem mostrando que metade da dieta dos britânicos é composta por ultraprocessados). Graças ao pioneirismo dos estudos do nosso parceiro Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP), liderado pelo professor Carlos Monteiro, o Brasil está na vanguarda neste assunto. E o marco é o Guia Alimentar para a População Brasileira, organizado por Monteiro e lançado em 2014.

"Em 2014, o governo brasileiro deu um passo radical ao aconselhar a população a evitar o consumo de produtos ultraprocessados. O país estava reagindo, com senso de urgência, ao fato de o número de jovens adultos obesos ter saltado rapidamente, mais do que dobrando entre 2002 e 2013 (de 7,5% da população para 17,5%). O novo guia sugeria que os brasileiros deveriam: evitar snacks, priorizar alimentos frescos, fazer refeições regulares e na companhia de outras pessoas, aprender a cozinhar e ensinar as crianças a reconhecer 'todas as formas de propagandas de alimentos'.

"As orientações do guia tratam o grau de processamento dos alimentos como a questão central da saúde pública. (...) Até aqui a classificação era inédita. Ao ter como principal orientação evitar o consumo de produtos ultraprocessados, o guia condena de uma vez não só fast food e snacks, mas todas as comidas que foram reformuladas para parecer mais saudáveis, da margarina light ao cereal matinal 'com vitaminas'.

"De uma perspectiva britânica – onde a diretriz oficial ainda classifica margarinas low-fat e cereais empacotados como 'opções mais saudáveis' – parece extremo alertar os consumidores a evitar todos os produtos ultraprocessados (até a sopa de tomate Heinz?). Mas existem evidências científicas para amparar a posição brasileira."

Bee Wilson conta para os ingleses (para o mundo todo, porque o site do Guardian tem audiência alta em muitos países) como o professor Carlos Monteiro criou a classificação dos alimentos por grau de processamento baseado em pesquisas epidemiológicas. Quem frequenta o Panelinha conhece essa história, que contamos em outro texto. Ela explica a classificação dos alimentos por grau de processamento e conta que surgiram muitos estudos mostrando a correlação entre o consumo elevado de alimentos ultraprocessados e o aumento da obesidade nas populações.

"Para Carlos Monteiro, o saco de açúcar no balcão da cozinha é um sinal de saúde, não porque o açúcar em si tenha algo bom, mas porque ele pertence a uma pessoa que cozinha. Os dados que Monteiro coletou sugeriram a ele que as casas que ainda estavam comprando açúcar eram as casas em que ainda se faziam preparos tradicionais brasileiros, como arroz e feijão."

Mas ninguém tinha conseguido provar que a relação é de causa e consequência. Até que no ano passado um estudo mudou essa história. Kevin Hall, do Instituto Nacional de Saúde, organizou o estudo clínico em que vinte pessoas foram isoladas no laboratório, fazendo todas as refeições ali, com a mesma quantidade de calorias e nutrientes e o mesmo tempo de exercício físico. Metade recebeu uma dieta exclusivamente composta de ultraprocessados e a outra metade comeu só comida de verdade. Em duas semanas, quem recebeu ultraprocessados engordou um quilo. E quem comeu comida de verdade perdeu um quilo. É a prova absoluta que faltava.

"Depois que o estudo de Hall foi publicado em julho de 2019, passou a ser impossível descartar a proposta de Monteiro, de que o aumento do consumo de ultraprocessados estava ligado ao risco de obesidade. Depois do resultado da pesquisa de Hall, Monteiro e seus colegas brasileiros perceberam que começaram a ser levados mais a sério. E agora que há prova absoluta, está mais do que claro que a dieta deve ser baseada em comida fresca preparada em casa."

Comida fresca preparada em casa? Opa!

É aí que eu entro na conversa. Bee Wilson me telefonou numa tarde no fim do ano passado, enquanto apurava essa grande reportagem. Conversamos sobre a importância (e os desafios) de cozinhar e de entender a classificação dos alimentos por grau de processamento para poder fazer melhores escolhas.

"Lobo afirmou que quando fala às pessoas sobre os ultraprocessados, a primeira reação é de raiva. 'Eles dizem: não vou poder comer meu iogurte e minha barra de cereal? O que vou comer?'. Depois de um tempo, porém, ela diz que o conceito de ultraprocessado é 'quase um alívio', porque ele libera as pessoas das polaridades e restrições criadas por dietas restritivas ou desintoxicantes. As pessoas ficam felizes, diz Lobo, quando percebem que podem comer sobremesa de novo, desde que seja caseira.

"No Brasil cozinhar as próprias refeições ainda tende a ser mais em conta do que baseá-las em ultraprocessados, diz Lobo. Os produtos ultraprocessados são relativamente novos e a memória de uma tradição de cozinha caseira ainda não morreu no país. 'No Brasil, não interessa se você é rico ou pobre, você cresceu comendo arroz e feijão. O problema para vocês [no Reino Unido] é que vocês não sabem qual é o arroz e feijão de vocês".

Nós aqui no Brasil sabemos muito bem: viva o pê-efe, viva o arroz com feijão, viva a dieta brasileira. E por falar em comida preparada em casa, olha quanta ideia de pê-efe aqui do lado.

O texto inteiro, em inglês, pode ser lido aqui.